Os efeitos do calendário mundial do futebol sobre a saúde física e mental dos atletas são fonte de preocupação do sindicato mundial de jogadores profissionais (FifPro, na sigla em inglês). Um estudo divulgado pela entidade revelou um aumento na participação de jogadores em partidas consecutivas, além de outros indicativos de carga excessiva de trabalho, como viagens longas, pouco tempo de descanso entre jogos e intervalo menor entre as temporadas.
Xhaka sente lesão durante dérbi entre Arsenal e Tottenham — Foto: AFP
– Esse relatório chega na hora certa, já que estamos vendo muitas discussões no futebol mundial em termos de reformas nas competições, obviamente a maior de todas na mídia é a potencial mudança na frequência da Copa do Mundo. Esse relatório se destina a ser nossa contribuição para a discussão de uma reforma no calendário – afirmou o secretário geral do FifPro, Jonas Baer-Hoffmann, na apresentação do estudo, semana passada.
Henderson sofreu lesão durante a derrota do Liverpool para o Everton — Foto: Getty Images
A preocupação com o calendário é o tema do momento no Brasil, já que os diversos jogos adiados – de times que tiveram jogadores convocados para a seleção ou devido à coincidência de datas de diferentes competições – ameaçam o encerramento da temporada nacional no período previsto, 5 de dezembro. Semana passada, a CBF anunciou que não irá adiar jogos do Campeonato Brasileiro durante a data Fifa, período destinado às partidas da seleção brasileira pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo. Com isso, o Brasileirão terminará no dia 9 de dezembro, e a temporada do futebol nacional, no dia 15, com a decisão da Copa do Brasil.
Citando recomendações científicas, o FifPro alega que o excesso de partidas sem descanso prejudica a saúde, o nível de performance e a longevidade dos atletas. Segundo o estudo, a temporada 2020/21 apontou um aumento do acúmulo de jogos, especialmente entre os jogadores que defendem suas seleções. Alguns desses atletas passaram, em média, 67% do tempo disputando jogos consecutivos na última temporada, acima da média dos dois anos anteriores (61%).
Relatório sugere atenção à “zona crítica”
O relatório do FifPro defende que os jogadores tenham um descanso quando atingirem a chamada “zona crítica”, baseado em uma plataforma de monitoramento desenvolvida pela entidade (FifPro PWM), com um intervalo obrigatório após um determinado número de jogos seguidos. “Isso poderia levar, por exemplo, um jogador que disputa o Campeonato Inglês a ter de dois a oito jogos a menos, entre clube e seleção, durante a temporada“, diz um trecho do relatório.
– Isso é claramente fundamental. Sabemos que os jogos consecutivos aumentam o risco de lesões, isso já foi demonstrado várias vezes, inclusive pela Fifa. É claro que a saúde mental está associada a múltiplos jogos, e o nível de estresse tende a aumentar durante os período de jogos consecutivos. Há uma grande variedade de problemas e outros resultados do acúmulo de jogos – observou o australiano Darren Burgess, que trabalhou em clubes como Arsenal e Liverpool como chefe de performance e hoje é consultor do FifPro.
O atacante Danny Welbeck sofreu uma grave contusão no jogo do Arsenal contra o Sporting — Foto: Eddie Keogh/Reuters
Além dos jogos ininterruptos, o estudo identificou outros três pontos principais de impacto negativo na saúde e performance dos jogadores: tempo para descanso e recuperação de lesões, intervalo entre temporadas e viagens internacionais.
– Há muitas coisas que afetam os jogadores tanto física como mentalmente. Não é apenas a carga de jogos, mas também as viagens internacionais, mudanças de fuso horário e clima – comentou Burgess.
Jogadores sul-americanos sofrem mais o impacto de viagens
Em relação às viagens, os jogadores sul-americanos que atuam na Europa têm um impacto maior, não só pelo tempo de deslocamento como pelas mudanças drásticas de clima e fuso horário. Mesmo com a diminuição de jogos internacionais durante a pandemia de Covid-19, alguns jogadores se deslocaram por mais de 200 mil quilômetros nos últimos três anos – distância equivalente a cinco voltas ao mundo. E as competições de maior impacto foram as Eliminatórias da América do Sul para a Copa do Mundo (6,6 mil quilômetros de deslocamento médio) e o Mundial de Clubes (6,4 mil quilômetros).
Di María sofre lesão Argentina x Panamá — Foto: EFE
Para o FifPro, o resultado do estudo confirma a necessidade de uma reforma do calendário do futebol mundial. No entanto, o secretário geral da entidade teme que o assunto não seja tratado com o devido rigor neste momento em que se discute criação de novas competições internacionais e até uma possível redução do intervalo da Copa do Mundo, de quatro para dois anos.
– Estamos vendo nos últimos anos um aumento na discussão sobre carga de trabalho entre os jogadores, o que eu acho que é um bom avanço, baseado nas evidências que estamos oferecendo. Mas o que vemos na indústria é uma absoluta falta de uma visão holística e liderança da maioria das instituições. Acho que estamos diminuindo nossas chances de ter uma racional e efetiva reforma – afirmou Jonas Baer-Hoffmann.
– Também é importante, e sei que não é fácil conseguir, mas realmente gostaríamos de sublinhar a diferença entre as negociações. Uma coisa é conversar sobre o calendário, outra é conversar sobre competições. Mesmo com a proposta da Fifa que estamos vendo agora, são duas conversas separadas, você pode fazer uma reforma do calendário muito significativa sem mudanças nas competições, mas também vi nos últimos anos que também é possível haver reformas nas competições sem qualquer mudança no calendário – alertou.
“Só vamos fazer mudanças se beneficiarem a todos”, diz Infantino
Chefe Global de Desenvolvimento de Futebol da Fifa, o ex-técnico do Arsenal Arsene Wenger explicou, em entrevista ao ge, os principais pontos da proposta de reforma do calendário feita pela Fifa. Admitindo que a situação atual “é um caos”, o ex-treinador francês, de 71 anos, sugere um reagrupamento das Eliminatórias em, no máximo, duas janelas internacionais, mais longas, com uma divisão clara de 80% da temporada dedicada aos clubes, e 20% para seleções.
– Isso significaria menos interrupções para os clubes, menos viagens para os jogadores e uma separação clara entre competições de clubes e seleções, tornando mais fácil para os torcedores acompanharem e interagirem. Com menos dias para as Eliminatórias internacionais ao longo do ano, também abriria espaço para uma grande competição no final da temporada, seja uma Copa do Mundo ou uma disputa continental como a Copa América, por exemplo. E depois disso haveria um período de descanso obrigatório, na minha proposta seriam 25 dias, antes de os jogadores começarem a nova temporada – disse Wenger.
Em nota oficial, a Fifa anunciou semana passada que está realizando uma pesquisa global sobre reforma do calendário, com consultas já feitas com treinadores e jogadores, entrando agora na segunda fase, com participação de todas as 211 federações nacionais associadas à entidade, confederações e até mesmo torcedores. A Fifa pretende publicar o resultado em novembro, e realizar um seminário ainda em 2021.
– Temos a oportunidade de moldar a história do futebol, olhar adiante, aprender com o passado e desenhar o futuro. Nossa visão é fazer um futebol realmente global, mas só vamos fazer mudanças se elas beneficiarem a todos. Não pode haver perdedores aqui, todos têm que sair melhores disso. Se não for assim, não há razão para mudar nada – afirmou o presidente da Fifa, Gianni Infantino, no comunicado.